Foi num sábado qualquer que a viagem no tempo foi inventada. Inventada, não — descoberta. Bom, melhor dizer: apareceu de repente, e demoraram para explicar tudo isso.
Com a viagem no tempo, nada é real. Mas nada é falso o suficiente para não ser acreditado.
Sentado num banco de madeira, olhando patos elétricos brigarem com patos reais, esse sujeito magricela de cabelos bagunçados está com a camiseta ensopada de sangue. O sangue escorre de um furo em seu abdômen e mancha toda a sua cintura até a altura das pernas.
Esse pequeno homem de um metro e setenta, já com seus vinte e cinco anos. Humano, bípede, fluente em três línguas.
Sentado nesse banco de madeira, num futuro aparentemente perfeito. Ele não ouve nada além do grasnar dos patos reais e do som que deveria ser um grasnar dos patos elétricos, mas que, na verdade, parece mais com o som de um homem de meia-idade gritando num balde.
Esse — pela idade podemos dizer garoto — sabe que logo irá morrer. Não sabe apenas pelos leves desmaios que estão ocorrendo, nem pelo sinal vermelho que brilha na frente dos seus olhos, um sinal projetado pela SIV — Sistema Integrado na Visão —; ele sabe disso porque acredita que logo os sujeitos que deram esse tiro nele estarão aqui novamente. E provavelmente irão pôr uma bala em sua cabeça.
Esse banco de madeira em que ele se encontra sentado não é madeira de verdade. Nos anos de 2065, será proibido o uso de madeira na criação de móveis. Mas a ideia de usar madeira ainda é chique, rústica, moderna — mesmo tendo um chip implantado na têmpora.
Esse garoto, observando os patos, olha para o céu acinzentado como uma televisão fora do ar. Ao seu redor, campinas esverdeadas chiavam quando a brisa suave passava por elas.
Muitos foram contra as viagens temporais. Ainda acreditavam que a linha do tempo poderia ser modificada se algo desse errado. Mas é isso que as pessoas costumam fazer: acreditar em muitas coisas. Quando a máquina do tempo foi descoberta e usada para tentativas de consertos temporais, muitos voltaram e tentaram ser o criador da máquina do tempo. Mas falharam.
O colapso das potências trouxe diversas consequências para a sociedade. E tiveram outras guerras, como a das máquinas — mas isso é outra história.
Nesse momento, o SIV do garoto alerta com uma mensagem vermelha e em letras com serifa:
“Olá, como vai? Faltam menos de trinta e seis minutos para que seu corpo deixe de funcionar. Deseja que a SIV chame algum assistente de saúde? Faça algum sinal para informar.”
Ele coça a cabeça no local onde está o chip implantado e boceja. Está cansado, com frio e fome, e faz alguns minutos que perdeu alguém. Para a viagem no tempo, foram anos.
Entre um protesto e outro, a sociedade tentou impedir o avanço do dispositivo de viagem no tempo, conhecido como DeTamble. Em homenagem ao seu descobridor, o dr. Álvaro DeTamble. Um sujeito simpático, andava sempre de sapatos Oxford.
— Por causa do Elvis — dizia ele, sempre que alguém perguntava sobre os sapatos engraçados dele. O mais engraçado é que ele nascerá cinquenta e cinco anos depois do falecimento do rei do rock.
Dentro de seus sapatos Oxford, usando sua calça social, sua camiseta preta e, por cima de tudo isso, um jaleco, ele esbanjava um sorriso. Após descobrir a máquina do tempo, ele tinha que merecer esse sorriso.
No meio da comunidade científica, DeTamble era aclamado, ganhando prêmios e sendo aplaudido, mas em casa, ele tinha esse segredo.
Fora num sábado que a viagem no tempo foi descoberta.
A mulher dele havia falecido duas noites antes. O luto pairava sobre sua casa. Ele acabara de voltar da guerra contra as máquinas e esperava encontrar sua mulher em casa — viva, no mínimo.
Enquanto estava servindo o exército, atirando em simulacros humanos de dia e mandando cartas para sua futura noiva, prometia, entre poemas com jogadas científicas, que iria voltar logo e a pediria em casamento, ajoelhado em alguma praça. Ela respondia dizendo que esse era o sonho da vida dela. Ela esperava que ele viesse para casa logo. Casa a qual ele herdou dos pais.
Três dias depois que a guerra ficou mais pesada, ele foi chamado para a sala do coronel.
A mesa de madeira falsa os dividia de um lado e do outro da sala. O homem de uns cinquenta anos, atlético, com um espesso e volumoso bigode acima de lábios carnudos, era o coronel. O braço do homem era da dimensão de árvores. Ele apertou a pequena mão de DeTamble e disse:
— O senhor está gostando de participar da salvação da humanidade, soldado DeTamble?
E disse:
— Sou feliz em dizer que faz um ótimo trabalho, soldado. Dou-lhe meus sinceros parabéns. E acredite quando digo — ele deu um sorriso, passou a um rosto fechado e bruto — eu nunca dou parabéns.
DeTamble, segurando a mão dolorida após o aperto, olhou nos olhos do coronel e sentou na cadeira à frente da mesa. Passou a mão para tirar a boina, em seguida passou a mão sobre o cabelo ralo — obrigatório no exército — e disse:
— Bom, fico muito feliz, senhor. — Não gaguejava. — Mas, bom, eu sou meio que contra a guerra... só estou aqui por obrigação mesmo. E, além disso, sou formado em Eletro-Robótica. Basicamente fui estagiário na criação da maioria dos exemplares que metemos chumbo aí fora.
O coronel limpou um dos dentes e balançou o nariz como se fosse realizar algum tipo de feitiço. Sentou-se na cadeira e, agora com voz mansa, pediu para os outros soldados o deixarem a sós com DeTamble.
A sala era pequena, com grandes arquivos encostados nas paredes. Havia mapas onde não havia arquivos. O coronel tirou a boina e, com voz baixa, disse:
— DeTamble, posso te chamar assim? — Gotas de suor brotavam da testa dele. Limpou com uma esfregada da enorme mão musculosa e disse:
— Infelizmente, soldado, trago péssimas notícias. Recebemos um telegrama — ele fez uma pausa.
DeTamble sentiu o arrepio que subiu em seu braço. Algo ruim estava por vir — disso ele tinha certeza.
Naquele sábado, dentro de sua casa, após voltar do exército com a triste notícia, ele pretendia fazer a janta. Não havia jantado ou comido algo desde que voltou para casa. Sentia seus ossos doerem de fraqueza. Acendeu a luz da cozinha e pôde ver como tudo estava uma bagunça. Abriu a geladeira e pegou uma cerveja.
A faca sobre a mesa chamava sua atenção. Ele pensou:
Um suicídio até que não seria tão mal. Já perdi meus pais, perdi minha namorada, perdi meu cachorro, meu emprego.
Ele pensava enquanto segurava o utensílio perto do pulso. Sobre a mesa de tampo de vidro, havia esse frango descongelando. Ele pensou:
Morrerei sem fome.
Ele não sabia cozinhar, então pediu à SIV algum tipo de preparo para o cadáver da ave terrestre.
Então a voz feminina dentro de sua cabeça disse:
“Como fazer frango assado dourado.”
E começou a ditar os ingredientes. DeTamble só tinha o frango — e nada mais. Seguiu toda a receita e, a cada ingrediente que não tinha, tomava um gole de cerveja. Já quase bêbado e encarando o frango e a faca, levantou-se. Caminhou em direção a ambos. Pegou a faca em uma das mãos e o frango na outra. Trouxe para perto do rosto a faca — e em seguida o frango. Por um momento, achou ter ouvido um som de tic-tac vindo do frango.
Balançou a cabeça em reprovação para a cerveja.
Tic-tac.
O som vinha de dentro do frango.
Tic-tac.
Ele tinha certeza disso.
Tic-tac.
Com a faca, atravessou a pele do frango, fazendo um rasgo suave sobre o animal morto e descongelado. A pele parecia uma borracha enquanto DeTamble cortava. E, quando abriu uma fissura, viu um pedaço de papel. Puxou o pedaço de papel e nele dizia:
“Esqueça isso de se matar, tudo está conectado. Abra o frango e vamos renascer.”
Assustado com a mensagem, ele jogou o frango no chão. E viu que atrás do bilhete havia outra mensagem:
“Ok, agora pegue o frango do chão e vamos renascer.”
Trêmulo, agarrou a ave e abriu-a em dois. Ossos saíam pela carne aguada do animal, e no meio dela havia um relógio de pulso — do tipo que só era visto em museus. Segurando o relógio, DeTamble notou que atrás do mesmo tinha seu nome escrito errado: “Dtamble”.
O relógio fazia tic-tac, mas não tinha ponteiros. Não tinha nada em sua frente — apenas uma folha branca, sem detalhes ou qualquer outra coisa do tipo. O relógio continha pulseiras de couro, era banhado em ouro e tinha alguns fios para fora da caixa.
DeTamble tocou na caixa branca.
E nunca mais foi visto.
Conto encontrado nos arquivos do escritor. Escrito em 2021.
Provavelmente é o capítulo de algum livro inacabado.
Escrito por Maicon Moura (que sou eu), escritor(?), designer e desenhista.
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