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Passar um tempo sem fazer nada. Sem ficar inventando coisas. Foi muito bom.
Mas notei que, ao passar dos dias, enquanto eu vivia esse ócio eterno sem tentar ou pensar em criar alguma coisa, reprimindo as ideias que surgiam, notei que meu reflexo no espelho do banheiro e em outros espelhos limpos o suficiente para que eu pudesse ser refletido, estava sumindo.
Não é uma coisa comum no meu dia a dia não ter meu reflexo no espelho. No começo, foi meio estranho. Como um bom acomodado, não demorei para me acostumar em olhar no espelho e ver que, a cada dia, aquele eu ao contrário ficava mais opaco e transparente.
Foi por volta da segunda semana que já dava para ver a parede através do meu reflexo no espelho. Voltei a ficar preocupado com a situação quando o meu reflexo era quase um borrão.
Ainda estava nos meus dias de não começar nada. Tive tantas ideias nesse período que, se tivesse anotado tudo, poderia ter muitos motivos para procrastinar e desistir.
Foi numa quarta-feira de madrugada que as coisas ficaram um pouco mais estranhas. Levantei no meio da noite com muita dor de cabeça. Meus olhos doíam e parecia que eu poderia vomitar a qualquer momento.
Me esforcei e consegui sair da cama. Cada passo era um latejar no meu cérebro. Caminhei pelo escuro do quarto em direção ao banheiro. Entrei e logo fui olhando nas gavetas para ver se achava algum comprimido de dipirona. Não me dei o trabalho de olhar no espelho. Nem de acender a luz.
Assim que encontrei o comprimido, fui até a cozinha para pegar um copo d'água. O remédio desceu pela minha garganta, deixando aquele gosto horrível da dipirona. Aquele amargor ficou na minha garganta até eu acordar novamente, horas depois, já sem tanta dor de cabeça. No entanto, ainda sentia meus olhos fundos, como se houvesse um vazio atrás do meu rosto.
Levantei agora num quarto iluminado e, outra vez, fui direto ao banheiro. Escova. Pasta de dente. E foi nesse momento que olhei para o espelho. E não vi nada além de um pequeno post-it amarelo.
Nem sinal do meu reflexo. Eu olhava direto para o reflexo da porta que estava atrás de mim. Talvez, pensei, eu ainda esteja dormindo.
Caminhei até o quarto, onde há outro espelho, e mais uma vez me deparei com um vazio. Eu não estava lá. O espelho mostrava a parede logo atrás de mim. Voltei ao banheiro e peguei o post-it, que tinha algo escrito atrás, do lado da cola.
Era uma mensagem do meu reflexo, que fez questão de escrever ao contrário para que eu só lesse no reflexo do espelho. Achei de certa maneira engraçado ele ter pensado nisso em seus últimos momentos.
“everb me otlov”
Terminei de escovar os dentes. Lavei o rosto e mantive minha respiração calma. Não poderia entrar em pânico. Como eu conseguiria dizer para minha esposa que estava sem meu reflexo?
Era uma situação um tanto delicada, e meu desespero poderia levar ao desespero dela.
Nos livros de mitologia, os vampiros não têm reflexo. Não lembro de ter sido atacado por algum. Janela sempre fechada. Não costumo sair à noite. E o sol naquela manhã não me fez queimar ou até mesmo brilhar.
Tentei manter a manhã como qualquer outra. Levei meu cachorro para passear. Fiz café. Ajeitei minha mesa de trabalho e me preparei para começar o dia. Tudo ainda com a sensação de que minha cabeça estava estranhamente vazia. Como se meus olhos não estivessem no lugar.
Minha esposa, quando acordou, não pareceu notar alguma diferença. Talvez, quando você perde seu reflexo, nada muda em você, apenas no espelho. Tivemos um dia comum. Mesmo que eu passasse horas tentando entender o que aconteceu.
Foi no fim daquele dia, por volta das cinco horas, que comecei a sentir o corpo mais leve. Parecia que meu corpo estava sem gravidade. Tocar ou segurar as coisas tinha uma sensação diferente e distinta, como se nada tivesse um peso real.
Comentei isso com minha esposa, mas sem mencionar a ausência do meu reflexo no espelho. Ela disse que poderia ser efeito da dor de cabeça e me aconselhou a deitar um pouco.
Fiz o que ela disse e, assim que me deitei, meu corpo ganhou toneladas. Senti todo o peso esmagar minha coluna. Por um momento, pensei que iria cair do outro lado da cama e me espatifar com força no chão. Tentei me levantar, mas meus braços tremiam e cederam.
Pensei ser um bom momento para ficar desesperado. Acordar sem reflexo, essa sensação de não ter olhos e, naquele momento, não conseguir me mover pareciam motivos bem plausíveis para um desespero.
Tentei gritar. Uma, duas, três vezes. Mas minha voz não saía. Comecei a ficar mais desesperado. Meu coração batia tão rápido que eu podia senti-lo nos ouvidos. Aquilo me lembrava as diversas paralisias do sono que eu costumava ter quando mais novo.
Respira. Calma. É só um sonho. Devo ter dormido rápido. Sono profundo. Pesado. Comecei a me convencer de que era um sonho. Nada mais que isso. E lá, de olhos abertos, deitado na cama com minhas toneladas, pude ouvir a janela sendo aberta.
Vi, com o canto dos olhos, uma mão entrando pela janela. Tentei me movimentar ou gritar, mas não consegui. Depois, um braço, depois uma perna?
Tinha alguém invadindo meu quarto. Tentei gritar. Chamar minha esposa. Mas meu corpo não respondia. Eu só podia ficar ali, observando meu quarto ser invadido. Foi quando a pessoa entrou por completo que consegui ver, quase de relance, quem era.
Assim que pulou a janela, o sujeito correu em disparada. Não olhou em volta e nem deve ter percebido que eu estava ali. Assim que colocou os pés no chão, desviou do banquinho que estava aos pés da cama. Correu e se jogou para dentro do espelho.
Era o meu reflexo.
Acordei no fim da noite. Não sentia nada. Estava tudo como deveria estar. Cocei os olhos e eles estavam ali. Meu corpo estava com o peso normal. Consegui me levantar sem esforço. E, quando passei em frente ao espelho, lá estava ele, olhando para mim.
Não sei onde ele foi, nem o que foi fazer, mas fico feliz que tenha voltado. Não sei se sobreviveria mais dois ou três dias sem meu reflexo.
Por um momento, enquanto encarava o espelho, tive a sensação de vê-lo sorrir, mas isso seria impossível.
Especialista em nada
— Tenho uma novidade para contar.
O "Dê Frente com a Niusa", aquele quadro de entrevistas que tinha no começo da Nius, evoluiu para algo mais nonsense e divertido. Depois desse período sem criar nada, apenas anotando coisas e pensando em outras, assim que meu reflexo voltou, decidi colocar em prática essa ideia.
Agora, toda semana teremos um podcast/papo com alguém comum, que não é especialista em nada.
Para diminuir as chances de eu procrastinar, o podcast não será editado. Na verdade, para ficar mais engraçado, removerei os momentos de pausa, mas não teremos músicas nem cortes.
Será uma entrevista divertida, com perguntas nonsense e totalmente desnecessárias. Mas com pessoas que admiro e que foram gentis o suficiente para entrar na brincadeira.
E no nosso primeiro episódio, tive o prazer de conversar com um especialista em culinária.
QUACKdrinho
algo útil
— R$5,68. quase seis reais.
mouranius?
escrito e às vezes ilustrado por Maicon Moura — que sou eu, escritor e designer e duble de cronista.
— Tá aqui ainda? A nius já acabou, vai trabalhar, vai!
kkkkkkk amei o quadrinho!
Cara, ficou muito legal, agradeço pelo convite. Ja estou curioso para ouvir o próximo convidado.
Perder o reflexo é muito mais interessante do que perder sombra (né Murakami).